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História, Política, Religião

O Papa e os movimentos sociais – Francisco não é comunista; apenas católico.

Foto: AFP.

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Antes de adentrar no tema dos movimentos sociais em si, essencial desfazer um mito em relação ao “Bispo de Roma”. Em razão das inúmeras críticas do Papa Francisco ao capitalismo durante seu Pontificado, especialmente as mais recentes proferidas na Encíclica Laudato Si’ e num discurso em solo boliviano aos movimentos sociais latino-americanos (houve também o episódio no qual aceitou um presente peculiar de Evo Morales, um crucifixo em formato de foice e martelo), muitos acusam o Papa de ser comunista. Essa rotulação não possui qualquer fundamento, como explanado a seguir.

Antes de tudo, importante informar que o próprio Pontífice não vê a comparação como insulto, pois, apesar de considerar equivocada a ideologia marxista, reconhece que conheceu durante sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.

“Equivocada”, diz o Papa. Pois bem, notória a posição combatente da Igreja em relação ao marxismo/comunismo ao longo da história. Em várias encíclicas e pronunciamentos papais, não foram poupadas severas críticas à visão materialista da história, ao ateísmo inerente à ideologia marxista, à perseguição religiosa nos países “comunistas”, à supressão da propriedade privada dos meios de produção, entre tantos outros fatores.

Contudo, poucos sabem (talvez ante menor divulgação na imprensa ao longo dos tempos) que, igualmente, há na Igreja um histórico de críticas ao capitalismo e suas mazelas desde os tempos da Encíclica Rerum Novarum (1891) do Papa Leão XIII (defendeu os direitos dos operários, a dignidade no trabalho, a uma espécie de salário mínimo — em suma, consolidou a doutrina social da Igreja) e que vêm influenciando profundamente o pensamento de todos os Papas (uns mais, outros menos críticos) desde então. Mesmo o Papa Emérito Bento XVI, tido como conservador, chegou a dizer que “causam apreensão os focos de tensão e conflito causados por crescentes desigualdades entre ricos e pobres, pelo predomínio duma mentalidade egoísta e individualista que se exprime inclusivamente por um capitalismo financeiro desregrado”, além de deixar eternizado na Encíclica Caritas in Veritate, as seguintes passagens (grifos nossos aqui e em todas citações subsequentes):

36. A atividade econômica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir econômico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.

Assim, quando critica as mazelas do capitalismo (o sistema econômico atual), Francisco não deturpa, mas abraça a doutrina católica. Apenas o tacham de comunista aqueles que possuem uma visão extremamente limitada e maniqueísta do mundo. Todavia, alguns podem questionar: “por que ele não critica severamente o comunismo também? ” Ora, o Muro de Berlim caiu e, fora teorias conspiratórias, não há um risco real de avanço do comunismo no mundo ocidental (não se vê em parte significativa da esquerda do Brasil e dos países desenvolvidos, por exemplo, a defesa da abolição da propriedade privada ou a socialização dos meios de produção).

Pois bem, desfeita essa “acusação” sem sentido, pode-se passar à análise do discurso do Papa aos movimentos sociais latino-americanos. Resumidamente, criticou os excessos do sistema atual que: exclui pessoas da vida social; nega sua dignidade; impõe uma lógica do lucro a todo custo; e vem prejudicando severamente o meio ambiente — enfim, um sistema insuportável: “não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…. E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia são Francisco. ”

O Bispo de Roma disse ainda que “quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade entre os homens, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum” e outrossim dirigiu as seguintes palavras aos líderes dos movimentos sociais:

 Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 t’s” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais.

Palavras indubitavelmente fortes, mas que encontram guarida no pensamento Papal nos últimos 125 anos. Vejamos a seguir.

O Papa Leão XIII através da Rerum Novarum estabeleceu, segundo explanou o grande escritor católico e inglês, G.K Chesterton (1874-1936), que:

(…) a existente concentração de riqueza no Capitalismo impôs “um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários. 2. Que não podemos esperar fugir disso através da maior concentração do Comunismo, já que nega até as formas naturais de propriedade, liberdade e lar. 3. Que os assalariados possuem direito de se reunir e até fazer greve; e em certas condições de justiça, seria melhor que “os pobres dentro do possível se tornassem donos”; isto é, pequenos capitalistas ou possuidores dos meios de produção. 

Sentencia Leão XIII:

A força destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não veem, pois, que despojam assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador.

Aliás, católicos como Chesterton, inspirados na Encíclica, seguiam o lema “Três acres e uma vaca”, defendendo a difusão da propriedade e da autossubsistência para todos; o que se assemelha um pouco aos 3 t’s (trabalho, terra e teto) mencionados pelo Papa Francisco.

Nesse sentido, posicionaram-se todos os papas subsequentes, como Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno (1931, sobre os quarenta anos até então da Rerum Novarum):

É coisa manifesta, como nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um verdadeiro despotismo econômico nas mãos de poucos, que as mais das vezes não são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negociam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença. Este acumular de poderio e recursos, nota característica da economia atual, é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência. Por outra parte este mesmo acumular de poderio gera três espécies de luta pelo predomínio : primeiro luta-se por alcançar o predomínio econômico; depois combate-se renhidamente por obter predomínio no governo da nação, a fim de poder abusar do seu nome, forças e autoridade nas lutas econômicas; enfim lutam os Estados entre si, empregando cada um deles a força e influência política para promover as vantagens econômicas dos seus cidadãos, ou ao contrário empregando as forças e predomínio econômico para resolver as questões políticas, que surgem entre as nações.

As últimas consequências deste espírito individualista no campo econômico são essas que vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, vedes e lamentais: a livre concorrência matou-se a si própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio econômico; à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimos originados da malfadada confusão dos empregos e atribuições da pública autoridade e da economia, quais são : primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da majestade do Estado, a qual do trono onde livre de partidarismos e atenta só ao bem comum e à justiça, se sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios públicos, se vê feita escrava, entregue e acorrentada ao capricho de paixões desenfreadas; depois, no campo das relações internacionais, dois rios brotados da mesma fonte : de um lado o Nacionalismo ou Imperialismo económico, do outro o Internacionalismo ou Imperialismo internacional bancário, não menos funesto e execrável, cuja pátria é o interesse.

João XXIII, o “Papa Bom”, na Encíclica Mater et Magistra (1961) – também menciona pronunciamentos de seu predecessor, Pio XII:

  1. A essa exigência de justiça pode satisfazer-se de diversas maneiras que a experiência sugere. Uma delas, e das mais desejáveis, consiste em fazer que os trabalhadores possam chegar a participar na propriedade das empresas, da forma e no grau mais convenientes. Pois nos nossos dias, mais ainda que nos tempos do nosso predecessor, “é necessário procurar com todo o empenho que, para o futuro, os capitais ganhos, não se acumulem nas mãos dos ricos senão na justa medida, e se distribuam com certa abundância entre os operários
    (…)
  1. Não é possível determinar, em pormenor, quais as estruturas do sistema econômico que melhor correspondem à dignidade humana e mais eficazmente desenvolvem o sentido da responsabilidade. Contudo, o nosso predecessor Pio XII indica oportunamente esta diretriz: “A propriedade agrícola pequena e média, a artesanal e profissional, comercial e industrial, deve ser assegurada e promovida; as uniões cooperativistas devem garantir-lhes as vantagens próprias da grande exploração; e nas grandes explorações deve ficar aberta a possibilidade de suavizar o contrato de trabalho pelo contrato da sociedade”.[26]
    (…)
  1. Como afirma o nosso predecessor Pio XII, a dignidade da pessoa humana “exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada, na medida do possível a todos”[29]e, por outro lado, entre as exigências que derivam da nobreza moral do trabalho, encontra-se também “a da conservação e do aperfeiçoamento de uma ordem social que torne possível e assegure a todas as classes do povo a propriedade privada, embora seja modesta”
    (…)
  1. Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos predecessores, é que o direito de propriedade privada sobre os bens, possui intrinsecamente uma função social. No plano da criação, os bens da terra são primordialmente destinados à subsistência digna de todos os seres humanos.

Papa Paulo VI na Encíclica Populorom Progressio (1967):

Ser libertos da miséria, encontrar com mais segurança a subsistência, a saúde, um emprego estável; ter maior participação nas responsabilidades, excluindo qualquer opressão e situação que ofendam a sua dignidade de homens; ter maior instrução; numa palavra, realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais: tal é a aspiração dos homens de hoje, quando um grande número dentre eles está condenado a viver em condições que tornam ilusório este legítimo desejo.

(…)

Daqui surgem grandes dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando contam com as exportações para equilibrar a sua economia e realizar o seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos.

(…)

Ao mesmo tempo, os conflitos sociais propagaram-se em dimensões mundiais. A violenta inquietação que se apoderou das classes pobres, nos países em via de industrialização, atinge agora aqueles cuja economia é quase exclusivamente agrária: também os camponeses tomam consciência da sua imerecida miséria. [9] Junta-se a isto o escândalo de desproporções revoltantes, não só na posse dos bens mas ainda no exercício do poder.

Enquanto, em certas regiões, uma oligarquia goza de civilização requintada, o resto da população, pobre e dispersa, é “privada de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade, e muitas vezes colocada, até, em condições de vida e de trabalho indignas da pessoa humana”.[10]

(…)
Porque aquilo que te atribuis a ti, foi dado em comum para uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”.[22] Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, “o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos”. Surgindo algum conflito “entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais”, é ao poder público que pertence “resolvê-lo, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais”.

(…)
O bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculos à prosperidade coletiva, pelo fato da sua extensão, da sua exploração fraca ou nula, da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável causado aos interesses do país. Afirmando-o com clareza, [24] o Concílio também lembrou, não menos claramente, que o rendimento disponível não está entregue ao livre capricho dos homens, e que as especulações egoístas devem ser banidas. Assim, não é admissível que cidadãos com grandes rendimentos, provenientes da atividade e dos recursos nacionais, transfiram uma parte considerável para o estrangeiro, com proveito apenas pessoal, sem se importarem do mal evidente que com isso causam à pátria.

O Papa João Paulo II foi um ferrenho crítico do comunismo (assim como todos os Papas, rejeitava-o como solução) e talvez o Pontífice mais simpático ao capitalismo. Entretanto, isso não evitou que escrevesse passagens como estas constantes na Encíclica Centesimus Annum (1991), a qual homenageava os cem anos da Rerum Novarum:

71.Nestas situações pode-se ainda hoje, como no tempo da Rerum novarum,falar de exploração desumana. Apesar das grandes mudanças verificadas nas sociedades mais avançadas, as carências humanas do capitalismo, com o consequente domínio das coisas sobre os homens, ainda não desapareceram; pelo contrário, para os pobres à carência dos bens materiais juntou-se a do conhecimento e da ciência, que lhes impede de sair do estado de humilhante subordinação. 

Muitos outros, embora não estando totalmente marginalizados, vivem inseridos em ambientes onde a luta pelo necessário é absolutamente primária, e vigoram ainda as regras do capitalismo original, na «crueldade» de uma situação que nada fica a dever à dos momentos mais negros da primeira fase da industrialização. Noutros casos, a terra é ainda o elemento central do processo econômico, e aqueles que a cultivam, excluídos da sua posse, estão reduzidos a condições de semiescravatura.

Papa Emérito Bento XVI, além da retro mencionada Encíclica Caritas in Veritate, disse num Angelus em 2007:

A emergência da fome e da ecologia estão a denunciar, com crescente evidência, que a lógica do lucro, se é prevalecente, incrementa a desproporção entre ricos e pobres e uma exploração arruinadora do planeta. Quando ao contrário prevalece a lógica da partilha e da solidariedade, é possível corrigir a rota e orientá-la para um progresso equitativo e equilibrado.

Joseph Ratzinger ainda ousou afirmar, num artigo publicado pela revista “First Things” em 2006, que: “Em muitos aspectos, o socialismo democrático foi e é próximo da doutrina social católica e teve, de qualquer modo, uma contribuição notável para a formação de uma consciência social”.

Urge salientar que todos esses Papas criticavam severamente (em todas as Encíclicas aqui mencionadas) o comunismo e o negavam como solução para os problemas do mundo. Defendiam o direito à propriedade privada, mas não paravam aí. Francisco, assim como seus antecessores, talvez de modo mais enérgico e determinado (além de notável carisma), deseja que a propriedade seja realmente universalizada e que todos tenham os “3 t’s” (trabalho, terra e teto) para que a dignidade humana seja efetivada e que finalmente consigamos extinguir o que o sábio argentino chama de “globalização da indiferença” presente no mundo.

No voo de volta à Itália, após sua passagem recente pela América Latina (julho de 2015), Francisco explicou, ao responder um questionamento sobre o discurso dado aos movimentos sociais, que apenas reiterou a doutrina social da Igreja e que isso não configura um fato político, mas mero fato catequético. Como se pode perceber nesse texto, ele tem razão. Portanto, sigamos o Papa e “digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice”.

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4 Comments

  1. Zé Pitaco

    Francisco é apenas um comunista da Argentina!

  2. Genilson

    A solução socialista

    Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para – os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.

  3. Jorge Ribeiro

    Bom material o contido neste blog. Obrigado pelo compartilhamento.

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