Share Button

Não se pode julgar o passado com os valores atuais. Um homem do mundo antigo era, logicamente, fruto do seu próprio tempo. Logo, injusto tachar como “pessoas ruins” grandes pensadores da estatura de Aristóteles e Sêneca, em razão de eles, como todos os seus contemporâneos, não terem questionado a escravatura enquanto instituição.

Não obstante, vale, através de paráfrase das lições do Historiador britânico Tom Holland no livro “Domínio”, lembrar alguns aspectos brutais da Antiguidade. Os espartanos praticavam uma forma de eugenia, os gregos tinham licença para estuprar seus conquistados como recompensa por seus atos, os romanos abusavam sexualmente seus escravos (ainda que crianças!), os persas criaram técnicas de tortura, e entre todos eles havia dois pontos terríveis em comum: aceitação ampla do infanticídio, e rejeição de quaisquer valores intrínsecos dos pobres, fracos e oprimidos.

Obviamente, isso não significa dizer que inexistiram semelhantes nefastos crimes na era cristã. Contudo há uma diferença essencial: aqueles eram vistos como reprováveis pela sociedade e pelos pensadores, enquanto os antigos não só não enxergavam objeções morais, como incentivavam e premiavam tais comportamentos abjetos. Isso levou o acima mencionado historiador inglês, ainda que agnóstico, a reconhecer que seus próprios valores e os da civilização ocidental derivam distintamente do cristianismo.

Sobre a escravidão, importante entender que era parte central da economia, e vista como algo normal e inevitável. No máximo, falava-se em propiciar melhores condições aos escravos, porém nem se cogitava sua extinção. Conjuntura semelhante na própria Bíblia. Há passagens sugerindo bom tratamento aos subjugados; entretanto, apesar das palavras de São Paulo (“Não há mais judeu nem gentio, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus”, Gálatas 3:28) e do mandamento de Cristo de amar o próximo como a si mesmo (que viriam a inspirar o movimento abolicionista moderno), não há condenação explícita da escravidão em nenhum livro bíblico.

Nesse mundo antigo que surge Grégorio de Nissa, teólogo influente (sobretudo em relação à trindade) e venerado como Santo nas Igrejas Católica, Ortodoxa e Anglicana. De família abastada, ele nasceu em 335 D.C. num Império Romano já cristão, na Província da Capadócia (hoje localizada na Turquia). Casado e Professor de Retórica, resolveu mais tarde na vida seguir o caminho monástico, comum em sua família; sua mãe, Emília de Cesareia, e quatro dos irmãos, Basílio Magno, Macrina (a Jovem), Naucrácio e Pedro de Sebaste, de igual modo, são considerados santos. Ele foi fortemente influenciado por seu irmão mais velho, Basílio Magno, e sua irmã Macrina, com quem aprendeu a dedicar sua vida aos pobres. O primogênito foi responsável pela criação das “Basileias” (posteriormente denominadas como tal), quase “cidades” para os mais necessitados, que abrigavam abrigos e, provavelmente, o primeiro hospital da história.

Grégorio se tornou Bispo da cidade de Nissa, também localizada na Capadócia. Segundo Tom Holland, ele não só criticou, como seu irmão mais velho, a diferença entre pobres e ricos, mas a própria instituição da escravidão (o primeiro pensador conhecido a fazê-lo expressamente). Em suas Homílias sobre o livro de Eclesiastes do Antigo Testamento, escreveu as seguintes passagens (tradução livre; coloquei “nota” entre parênteses para explicar algumas informações no texto):

Eclesiastes 2:7 (nota: passagem como consta na Bíblia de Jerusalém)

Adquiri escravos e escravos, tinha criadagem, e possuía muitos rebanhos de vacas e ovelhas, mais do que os meus predecessores em Jerusalém.

 

334.5 Nós ainda encontramos ocasião para confissão sob esse argumento. Aquele que dá versão sobre seus afazeres relaciona uma depois da outra, quase todas as coisas através das quais é reconhecida a futilidade das atividades de sua vida. Mas agora ele trata como se fosse um sério indiciamento das coisas que fez, como resultado do que se é acusado do sentimento de orgulho. Tal é um exemplo rude da arrogância das coisas acima enumeradas — uma casa opulenta, abundância de vinhos, maturação em hortas, coleta de água nas piscinas e a canalizando nos jardins — quanto ao ser humano se considerar mestre da própria espécie?  Adquiri escravos e escravas, e tive escravos nascidos em casa.

Você percebe a enormidade da ostentação? Esse tipo de linguagem é elevada como um desafio a Deus. Pois ouvimos da profecia que todas as coisas são escravas do poder que transcende tudo (Salmos 119/118,91). Então quando alguém transforma a propriedade de Deus em sua, e arroga domínio sobre sua própria espécie, ao ponto de se pensar dono de homens e mulheres, o que ele está fazendo, senão ultrapassando sua própria natureza através do orgulho, considerando-se algo diferente de seus subordinados?

335,5 Adquiri escravos e escravas. O que você quer dizer? Você condena o homem à escravidão, enquanto sua natureza é livre e possui livre-arbítrio, e você legisla em competição com Deus, revogando vossa lei para a espécie humana. Aquele feito em termos específicos, que deveria ser dono da terra, e denominado para o governo pelo Criador – você o coloca sob o jugo da escravidão, assim desafiando e lutando contra o decreto divino.

335,11 Você esqueceu os limites de sua autoridade, e que o seu domínio é confinado sobre as coisas irracionais. Porque está escrito: domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil (Gênesis 1,26). Por que vai além do que está sujeito a você e se levanta sobre sua própria livre espécie, tratando-a como gado e répteis? Você sujeitou todas as coisas ao homem, declara a Palavra através da profecia, e no texto enumeram-se as coisas: ovelhas, bois e animais de campo (Salmos 8,7-8). Certamente homens não foram produzidos do seu gado? Certamente vacas não conceberam seres humanos? As criaturas irracionais são as únicas escravas da humanidade. Porém para você, essas coisas são de pouca importância. Faz crescer a erva para o gado, e a verdura para o serviço do homem, para fazer sair da terra o pão, diz-se (Salmos 104,14). Mas ao dividir a espécie humana em duas com ‘escravidão’ e ‘propriedade’, você a tornou escrava de si, e proprietária de si.

336,6. Adquiri escravos e escravas. Por qual preço, diga-me? O que você achou na existência tão valioso quanto essa natureza humana? Qual preço coloca na racionalidade? Quantos óbolos considera equivalentes à semelhança de Deus? Quantos estáteres (nota: moeda usada na Grécia antiga) você obteve ao vender o ser moldado por Deus? Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança (Gênesis 1,26). Se ele é conforme a semelhança de Deus, e tem domínio sobre toda a terra, e foi lhe concedida por Deus autoridade sobre tudo na terra, quem é seu comprador? Diga-me. Quem é seu vendedor? Apenas a Deus pertence esse poder, ou ainda, nem ao próprio Deus. Pois seus dons são irrevogáveis (Romanos 11,29). Deus, portanto, não reduziria o homem à escravidão, já que ele próprio, quando estávamos escravizados ao pecado, espontaneamente nos chamou à liberdade. Mas se Deus não escraviza o que é livre, quem é aquele que coloca seu próprio poder acima do de Deus?

336,20 Como pode o soberano de toda a terra e de todas as coisas terrenas ser colocado à venda? Pois a propriedade da pessoa vendida também será vendida com ela. Então quanto achamos que vale toda a terra? E quando todas as coisas da terra (Gênesis 1,26)? Se elas são inestimáveis, qual o preço do que está acima de todos eles? Diga-me. Se você dissesse ‘todo o mundo’, ainda assim não teria achado o preço que ele vale. (Mateus 16,26; Marcos 8,36). Ele (nota: Cristo), que sabia a natureza da humanidade, disse com razão que o mundo inteiro não valeria em troca da alma humana. Sempre que um ser humano está à venda, nada menos que o dono da terra é levado ao salão de vendas. Presumivelmente, então, a propriedade que lhe pertence também está em leilão. Isto significa que a terra, as ilhas, o mar, e tudo ali presente. O que o comprador pagará, e o que vendedor aceitará, considerando quantas propriedades estão envolvidas no negócio?

337,13 Mas será que o pedaço de papel e o contrato escrito, e a contagem dos óbolos, enganaram você, fazendo-o pensar ser o mestre à imagem de Deus? Que loucura! Se o contrato se perder, se o que foi escrito for comido por vermes, se uma gota de água derramasse e lhe destruísse, qual garantia tem de sua escravidão? O que possui para sustentar sua posição de proprietário? Eu não vejo superioridade sobre subordinado a não ser o mero título. O que esse poder contribui para você como pessoa? Não concede longevidade, nem beleza, nem boa saúde, nem superioridade na virtude. Sua origem permanece a mesma que a de seus ancestrais, sua vida segue do mesmo tipo, os sofrimentos da alma e corpo prevalecem sobre você e de igual modo sobre aquele que está sob sua propriedade – dores e prazeres, alegria e angústia, tristezas e deleites, iras e terrores, doenças e morte. Há alguma diferença nesses aspectos entre o escravo e seu proprietário? Eles não inspiram o mesmo ar que respiram? Eles não veem o sol de igual maneira? Eles não se sustentam consumindo comida? A disposição de suas entranhas não é igual? Não são os dois um só após a morte? Não há um julgamento para eles?  Um Reino em comum e uma Gehenna (nota: termo bíblico análogo ao inferno) em comum?

338,14 Se você for igual em todos esses modos, logo, de qual maneira tem algo extra, diga-me, o que faz você, que é humano, se achar mestre de um ser humano e dizer ‘Adquiri escravos e escravas’, como rebanhos de bodes ou porcos. Pois quando ele disse ‘Adquiri escravos e escravas’, ele acrescentou que abundância em rebanhos de gado e ovelha vieram até ele. Pois ele diz, e muitas possessões de vacas e ovelhas se tornaram minhas, como se tanto gado quanto escravos estivessem em igual grau sob sua autoridade.

 

Sobre essas impactantes e inspiradoras palavras o historiador britânico Peter Garnsey (em “Ideas of slavery from Aristotle to Augustine”. Oxford, 1996 p. 243), aduziu que constituem, como sintetiza e indica Bruno S. Gripp em nota introdutória à tradução da obra da personagem deste artigo (intitulada “Comentário ao Pai Nosso”, Editora Paideusis. Fontes Cristãs, 2018): “a denúncia mais veemente da escravidão até o surgimento do movimento abolicionista na era moderna” — tal movimento apenas floresce no século XVIII (cujos grandes expoentes foram os protestantes ingleses sob Willian Wilberforce), uma vez que anteriores tentativas de proibir atos de escravidão não resultaram na sua real abolição para todos, nem numa mudança relevante no zeitgeist; por exemplo, bulas papais condenando a escravidão foram solenemente ignoradas[1] (por favor, não deixem de ler as duas notas de rodapé no final deste post!).

Vale, igualmente, aqui transcrever o que disse sobre aqueles trechos, o filósofo, teólogo e estudioso bíblico, David Bentley Hart (tradução livre):

Em nenhum lugar dos vestígios literários da antiguidade, existe outro documento comparável à quarta homilia de Gregório de Nissa sobre o livro de Eclesiastes: certamente nenhum outro texto antigo ainda conhecido por nós — Cristão, Judeu ou Pagão — contém tão feroz, inequívoca e indignada condenação da instituição da escravidão. Não que constitua um tratado particularmente longo: é apenas uma parte do sermão, uma breve excursão exegética sobre Eclesiastes 2:7 (‘Adquiri escravos e escravas, e tive escravos nascidos em casa’), mas é uma passagem de notável intensidade retórica. Nela, Gregório trata a escravidão não como um luxo que deveria ser tolerado de modo temperado (como diria um Epicurista), nem como uma necessária economia doméstica muitas vezes abusada por arrogantes e brutais proprietários de escravos (assim como um estoico, tal qual Sêneca ou um cristão como João Crisóstomo), mas como algo intrinsecamente pecaminoso, contrário às ações de Deus na criação, salvação e à Igreja, e essencialmente incompatível com o Evangelho. (…). Gregório viveu numa época, na qual a resposta de teólogos cristãos à questão da escravidão variava de — na melhor das hipóteses — aceitação resignada à — na pior das hipóteses — defesa vigorosa. Contudo, então, isto torna ainda mais desconcertante a questão de como explicar a excentricidade de Gregório. Várias influências no seu pensamento podem ser mencionadas — mais relevante, talvez, a da sua venerada professora e irmã, Macrina, que convenceu a mãe de Gregório a viver uma vida simples com seus servos — mas isso poderia no máximo ajudar a explicar apenas o desgosto geral de Gregório pela instituição; ainda assim não explicaria a veemência absoluta e intransigente das suas denúncias.

Pois bem, infelizmente, numa sociedade cuja economia era dominada pela escravatura, as palavras inspiradas de Grégório de Nissa não reverberaram entre seus contemporâneos, nem o fizeram por muitos e muitos séculos…

Ao chegar à conclusão deste post, lembrei de um trecho do grande livro “O homem que ri” do mestre francês Victor Hugo:

Com o atrito, o ouro perde por ano um catorze avos de seu volume; isso tem o nome de abrasão; donde se segue que, em um bilhão e quatrocentos milhões em ouro que circulam pela terra, perde-se todos os anos um milhão. Esse milhão de ouro se pulveriza, voa, flutua, e átomo, e respirável, carrega, dosa, lastra e torna pesadas as consciências; amalgama-se com a alma dos ricos e os torna soberbos; com a alma dos pobres e os torna ferozes.

Talvez as palavras de São Gregório de Nissa não tenham sido perdidas no tempo. Quiçá elas não se pulverizaram, mas voaram, flutuaram no tempo, e, paulatinamente, tornaram pesadas as consciências dos homens, despertando-os para única conclusão possível sobre a escravatura: uma instituição vil e indefensável, “a crueldade mais atroz” (como escreveu o grande Darcy Darcy Ribeiro (nota de rodapé 2), que deve ser definitivamente extinta do nosso mundo.

 

[1] Como exemplo dessa ausência de efeitos práticos, relevante mencionar Rodney Stark (saudoso doutor e professor em sociologia e religião comparada) no livro “Baring False Witness”. Após tecer comentários sobre a Bula Papal Sublimis Deus, promulgada pelo Papa Paulo III em 1537 (que expressamente considerou os indígenas — e todos a povos descobertos a posteriori — seres racionais, e proibiu sua escravização), ele relata (tradução livre):

Numa segunda Bula sobre a escravidão, Paulo impôs a pena de excomunhão em qualquer que, independentemente de sua dignidade, estado ou condição… que possa de qualquer modo presumir em reduzir tais indígenas à escravidão ou tomar seus bens. Mas nada aconteceu. Logo, somada à brutal exploração dos indígenas, navios negreiros espanhóis e portugueses começaram a navegar entre a África e o Novo Mundo. E, tal como os missionários católicos no estrangeiro incitaram Roma a condenar a escravização dos índios, semelhantes apelos foram registrados sobre escravos negros importados.

Em 22 de abril de 1639, o Papa era Urbano VIII (1623-44), sob pedido dos jesuítas do Paraguai, editou uma Bula Comissum nobis, reafirmando a regra do ‘nosso predecessor Paulo III’, que aqueles que reduzissem outrem à escravidão, estavam sujeitos à excomunhão. Eventualmente, a Congregação do Santo Ofício (A Inquisição Romana) abordou o assunto. Em 20 de março de 1686, determinou em forma de perguntas e respostas:

Perguntou-se:

Se é permitido enganar os negros, capturá-los à força e outros nativos que não causaram danos a ninguém? Resposta: não.

Se é permitido comprar, vender ou fazer contratos, a respeito dos negros ou outros nativos que não causaram danos a ninguém e foram feitos cativos por força ou dolo?  Resposta: não.

Se os possuidores de negros e outros nativos que não causaram danos a ninguém e foram capturados por força e dolo, devem ser obrigados a libertá-los? Resposta: sim.

Se os captores, compradores e possuidores de negros e outros nativos que não causaram danos a ninguém e foram capturados por força ou fraude, devem ser obrigados a compensá-los? Resposta: sim.

Nada ambíguo aqui. O problema não foi que a Igreja falhou em condenar a escravidão; foi que poucos ouviram e a maioria não escutou. Naquela era, os Papas tinham pouca ou nenhuma influência sobre os espanhóis ou portugueses, uma vez que a Espanha governava a maior parte da Itália; em 1957, sob a liderança de Carlos V, eles até saquearam Roma. Se o Papa tinha pouca influência sobre a Espanha e Portugal, ele praticamente não tinha nas colônias do Novo Mundo, exceto indiretamente através do trabalho das ordens religiosas. Na verdade, era ilegal até publicar decretos papais “sob consenso real”, e o Rei também nomeava todos os bispos.

No entanto, a bula de Urbano VIII foi lida em público pelos jesuítas no Rio de Janeiro, resultando num ataque de desordeiros à Faculdade Jesuíta local, que deixou inúmeros padres machucados. Em Santos, uma multidão pisoteou o Jesuíta Vigário Geral quando ele tentou publicar a bula, e os jesuítas foram expulsos de São Paulo quando se propagou seu papel na aquisição da bula.

Apesar de o escrito por Stark, essencial aduzir que isso não isenta os membros e, principalmente, a liderança da Igreja Católica de não terem adotado um papel muito mais ativo na luta para que tais bulas papais tivessem real efetividade. Por isso, especialmente em relação ao clero católico brasileiro, essencial expor posição divergente apresentada por Joaquim Nabuco, inesquecível abolicionista pátrio, no célebre livro “O Abolicionismo” (1883):

Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, pregado do púlpito, sustentando com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas. Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja do Estado; pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religiosos de senhores e escravos. No sacerdote, estes não viam senão um homem que os podia comprar, e aqueles a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero, do posto que o Evangelho lhe marcou, foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religiosos das senzalas. A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação.

Se o que dá força ao abolicionismo não é principalmente o sentimento religioso, o qual não é a alavanca de progresso que poderia ser, por ter sido desnaturado pelo próprio clero, também não é o espírito de caridade ou filantropia. A guerra contra a escravidão foi, na Inglaterra, um movimento religioso e filantrópico, determinado por sentimentos que nada tinham de político, senão no sentido em que se pode chamar política à moral.

2. Em “O povo brasileiro”, o sociólogo brasileiro Darcy Ribeiro escreveu um dos mais belos e impactantes textos sobre os efeitos funestos da escravidão em nosso país:

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

Share Button