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As preces atendidas

Givaldo Barbosa / Agência O Globo. Foto retirada de: http://oglobo.globo.com/brasil/congresso-vazio-em-dia-de-jogo-do-brasil-na-copa-12895200

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Amigos e leitores, transcrevo aqui outro conto de minha autoria. Este possui inspiração na política brasileira e numa das minhas séries americanas favoritas: The Leftovers (recomendo!). Espero que gostem.


AS PRECES ATENDIDAS

“Deus, por favor, faça com que todos os políticos do Brasil desapareçam” — Mateus, um pai de família de 42 anos, nunca esquecerá aquele dia.

Desde a adolescência, ele se sentia incomodado ante tantos escândalos de corrupção envolvendo membros de todos os partidos do país. A ladroagem unia políticos das mais diversas ideologias que, ao sair do poder, passavam imediatamente a adotar o discurso de uma moralidade por si jamais praticada. A população, inocente, sempre acreditava e desconsiderava o passado recente.

Entretanto, o desgosto pelos políticos nunca havia gerado mudanças efetivas no comportamento de Mateus. “Sempre foi assim e não vai mudar”, pensava.

Corretor de imóveis, ele detestava o trabalho — principalmente a obrigação de bajular clientes e possíveis compradores. À noite, seus dois filhos malcriados, Rafael e Gabriel, enchiam sua paciência. Ainda tinha que aturar a “chatice” da esposa, Fernanda, boa pessoa e companheira dedicada, mas que cometera o “grave pecado” de perder parte da beleza da juventude. Mateus igualmente não reconhecia no reflexo do espelho o homem que fora um dia. Gordo, pálido, careca e com o rosto abatido, contudo, nada disso o impedia de ficar enojado pela suposta feiura de sua mulher.

Uma fascinação por Bruna, atriz que ficara famosa por participar do reality show EFB (espia e fofoca, Brasil), compensava a falta de erotismo e paixão em sua vida. Loura, dotada de lábios carnudos e um corpo escultural, ela era o revés do sagrado matrimônio: tipo de mulher que destrói qualquer relação conjugal alheia, embora “não sirva para casar” — segundo o pensamento de Mateus. Era ela quem estava nos seus pensamentos nos momentos individuais de prazer e quando finalmente deitava com sua esposa.

Um dia, assistia com Fernanda a um programa de fofoca. O apresentador, conhecido pelo bordão “quero ver provar que ‘tô’ mentindo”, dizia:

Yes, yes, meus amigos. Uma atriz, ex-EFB, ganhou nota 20 mil no quesito simpatia num encontro no Ministério da Fazenda.

Em razão da presença da mulher, Mateus tentou disfarçar sua cólera, pois havia lido meses antes numa revista semanal que um político corrupto recebera um presente de 20 mil reais de um grande empresário: uma noite com uma ex-participante de um famoso reality show. A imagem do desonesto homem público, a quem tanto odiava, fazendo sexo com sua musa não saía de sua cabeça.

Dinheiro público desviado prejudicava toda a população: menos investimento para educação, saúde e trabalho. Tudo isso aborrecia Mateus, mas, nada como o que acabara de acontecer. Os escândalos de corrupção faziam parte do “jogo”. Ele, se não aceitava, ignorava boa parte daquilo. Agora era diferente, um político corrupto cometera um pecado ainda maior: estragara seus sonhos eróticos. Imperdoável!

Naquela noite, Mateus, que não costumava rezar (“nada adianta”, pensava), resolveu, antes de dormir, ajoelhado, fazer um pedido aos céus:

— Deus, por favor, faça com que todos os políticos do Brasil desapareçam.

Mateus nada esperava — suas preces costumavam ser ignoradas. Acordou e viu que sua esposa preparara o café da manhã e o esperava sentada à mesa. Antes de começar a comer, ligou a televisão da sala de jantar (ali colocada para evitar diálogos tediosos com Fernanda). A programação normal estava no ar.

Quando, repentinamente, uma mensagem do mais famoso âncora do Brasil, Guilherme Mader, interrompeu o programa:

— Plantão urgente! Atenção! Deputados, senadores e membros do poder executivo, inclusive o vice e o presidente do Brasil, desapareceram. Não se sabe ainda o que aconteceu. As famílias dos políticos desconhecem o paradeiro dos seus entes queridos. Vamos agora ao repórter Lúcio Almeida, diretamente de Brasília, para mais informações.

— Exatamente, Mader. O clima é de apreensão aqui na capital federal. Ninguém sabe explicar o que aconteceu. Tentamos o contato com as sedes dos partidos políticos e não obtivemos resposta… — falava enquanto foi subitamente interrompido por Mader.

— Perdão, Lúcio. Chegaram agora outras notícias assustadoras: o fenômeno se espalhou pelo país. Todos os membros do executivo e legislativo, e todos filiados a partidos políticos estão desparecidos.

Mateus permaneceu atônito por alguns segundos. Logo depois, comemorou efusivamente, gritando: “funcionou, funcionou! ”.  Fernanda, assustada com tudo aquilo, perguntou:

— Amor, até político é gente. Não esqueça que eles têm família. Por que você está alegre desse jeito?

— Como assim? Estamos finalmente livres desses sanguessugas e tudo aconteceu por minha causa. Eu que pedi tudo isso a Deus. Minhas preces foram atendidas!

— Sei, sei. Deixe de besteira, homem — disse Fernanda.

Visto que nem sua esposa acreditou nele, Mateus decidiu não contar para ninguém sobre o seu papel naquilo tudo.

No dia seguinte, festas nas ruas em todo o país. Dez milhões de pessoas comemoravam, berrando e carregando cartazes que diziam: “Deus é realmente brasileiro”; “Um sinal dos céus: basta de políticos ladrões”; “O dia do acerto de contas chegou”; “O povo unido, não tem mais partido”; entre outros. Porém, uma parcela considerável de brasileiros, por compaixão ao próximo ou pela perda de amigos e familiares, ficou horrorizada ante macabras celebrações.

Completada uma semana do desaparecimento, nenhum sinal dos políticos. Cientistas e estudiosos renomados internacionalmente não conseguiram desvendar aquele evento. Diante do clima de incertezas, as Forças Armadas resolveram intervir. Naquela noite, num pronunciamento em cadeia nacional, o General Raimundo Henrique Tavares, Comandante Geral do Exército, disse:

— Boa noite, brasileiros e brasileiras. Recebemos um sinal divino: chegou a hora da mudança nesse país. Para tanto, imprescindível garantir o restabelecimento da ordem. Não é possível continuar neste caos em todos os setores, tanto no lado administrativo como no lado econômico e financeiro. Para efetivar um novo regime verdadeiramente democrático, estão removidos imediatamente todos aqueles nomeados por políticos para seus respectivos cargos (escolheremos outros membros para todos os órgãos, inclusive para o Supremo Tribunal Federal) e revogadas todas as leis, pois elaboradas sob as penas dos impuros. Assumo o comando provisório da nação, com a promessa de restabelecer o regime democrático e promulgar uma nova Constituição Federal. Meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações no processo para a eleição do brasileiro a quem entregarei o cargo o mais rápido possível.

Tal qual a maioria do povo brasileiro, Mateus gostou do conteúdo da mensagem. Apesar de não ter vivido o auge da ditadura militar, comungava com o pensamento de que a vida era melhor naquele período.

Um ano após o pronunciamento, a população perdera esperança de que um dia seriam convocadas novas eleições. Os que protestavam contra o governo eram severamente reprimidos. A censura voltou a reinar no país, e a corrupção, sem nenhuma fiscalização, era ainda maior. Mateus não se importava tanto. “Finalmente temos ordem nesse país de vagabundos” — era um dos seus frequentes devaneios.

No instante em que o governo decidiu pregar um moralismo hipócrita, a censura atingiu o entretenimento. Foram banidas as revistas adultas e todo e qualquer erotismo na televisão (“subversivos”, segundo o regime). Bruna, a musa de Mateus, por não possuir grandes talentos fora seu belo rosto e corpo escultural, os quais exibia constantemente em novelas e revistas, perdera completamente seu espaço na mídia. Repressão, violência, assassinatos, covardia, tudo secundário ante tal absurdo crime contra Bruna. “Inaceitável”, pensava Mateus. Sem titubear, seguindo idêntico ritual, ele pediu:

— Deus, desculpa incomodar novamente. Por favor, faça com que todos os militares desapareçam.

No dia seguinte, sumiram todos os militares brasileiros. Outro plantão nacional, novas manifestações em todo o país (agora, ainda maiores), celebrando o fim do regime opressor e a volta das liberdades. Não obstante, dessa vez, grupos de intelectuais brasileiros reuniram-se para convocar eleições a fim de eleger uma Assembleia Constituinte. A esperança e o otimismo tomaram conta dos brasileiros.

Sem os políticos, foram eleitos sobretudo celebridades: atores, jornalistas, apresentadores, pastores, ex-jogadores de futebol e cantores. Uma vez que todos eles financiados pelos mesmos grupos econômicos de outrora, os velhos problemas éticos e governamentais voltaram a aparecer. Ademais, a situação era ainda pior que a original, pois faziam falta os raros bons políticos, os quais realmente ajudavam a população mais carente e defendiam os direitos das minorias.

Mateus pouco se importava, porque, com o fim da censura, Bruna estava de volta à mídia. Todavia, ele deveria saber que antigos hábitos não morrem facilmente. Brevemente, ela passou a ser objeto de prazer num novo pornográfico jogo de poder. Ele era incapaz de suportar aquilo outra vez…

Fernanda estava acordada, em pé ao seu lado, bebendo um copo d’água. Ele, com os olhos fechados e sussurrando para que ela não ouvisse, disse:

— Deus, juro que é a última vez. Faça com que desapareçam os corruptos, os envolvidos em ilegalidades e todas as pessoas de má-índole. Por favor, realize mais esse desejo — sua esposa soltou um grito enquanto derrubava o copo no chão.

Mateus desaparecera.

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2 Comments

  1. Gabriel

    Muito bom! Gostei!

  2. Rafael

    Esse conto possui trechos baseados em fatos e falas reais! Excelente! Parabéns!

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