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Por toda a internet (websites, artigos, blogs, redes sociais e afins), e até mesmo em livros escritos por autores respeitáveis em suas áreas, encontra-se a seguinte afirmação, expressa com a mais absoluta certeza, como se fosse um truísmo: não se pode provar uma negativa.

Entretanto, essa “máxima” é incorreta, pois, sim, é possível provar uma negativa. Tal afirmação não é controversa; ao contrário, consiste em posição consensual entre os lógicos — aqueles que, sejam filósofos ou matemáticos, estudam academicamente a lógica.

Para explicar o assunto deste post, traduzo, com a devida autorização expressa do célebre autor, brilhante e divertido artigo escrito por Steven D. Hales, PhD. em Filosofia pela Brown University e Professor Titular de Filosofia da Bloomsburg University of Pennsylvania (clique aqui para acessar o seu site pessoal), intitulado “Você pode provar uma negativa”.

Antes de adentrar no texto mencionado acima, vale informar que o Professor Hales possui, além de inúmeros trabalhos acadêmicos, vários livros populares de sucesso (clique aqui para comprá-los), inclusive um muito interessante traduzido para o português, chamado “Cerveja & Filosofia. Leia, Pense e Consuma sem Moderação”.

Pois bem, segue abaixo o artigo traduzido:

Você pode provar uma negativa (You can prove a negativeclique aqui para ler a versão original em inglês)

Um princípio da lógica popular é que que não se pode provar uma negativa. Dr. Nelson L. Price, um pastor da Georgia, escreve em seu website que “uma das leis da lógica é que você não pode provar uma negativa”. Julian Noble, um físico da Universidade da Virginia, concorda, escrevendo no seu “Eletric Blanket of Doom” em sua palestra que “nós não podemos provar uma proposição negativa”. A professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, Patricia Buffer, assevera que “A realidade é que nós nunca podemos provar a negativa, nós nunca podemos provar a falta de efeito, nós nunca podemos provar que algo é seguro”. Uma rápida pesquisa no Google ou no Lexis-Nexis dá uma montanha de exemplos semelhantes.

Mas há um enorme problema em tudo isso. Entre lógicos profissionais, adivinhe quantos acham que não se pode provar uma negativa? Isso mesmo: zero. Sim, Virginia, você pode provar uma negativa, e é fácil, também. Em primeiro lugar, uma real lei da lógica é uma negativa, a lei da não contradição. Essa lei afirma que uma proposição não pode ser verdadeira e não verdadeira ao mesmo tempo. Nada é ao mesmo tempo verdadeiro e falso. Ademais, é possível provar essa lei. Pode ser formalmente derivado do conjunto vazio usando regras de inferência comprovadamente válidas (vou poupar você os detalhes chatos). Uma das leis da lógica que é uma provável negativa. Espere aí… Isso significa que acabamos de provar que não é verdade que uma das leis da lógica é a de que não se pode provar a negativa. Logo, nós provamos ainda outra negativa! Na verdade, “você não pode provar uma negativa” é uma negativa — logo, se você pudesse prová-la verdadeira, ela não seria verdadeira! Chiii!

Não só isso, mas qualquer alegação pode ser expressa como uma negativa, graças à regra da dupla negação. Esta regra afirma que qualquer proposição P é logicamente equivalente a Não-Não-P. Então escolha qualquer coisa que você quiser provar. Acha que pode provar sua própria existência? Pelo menos para sua própria satisfação? Então, usando o mesmo raciocínio, somado ao pequeno passo da dupla negação, você pode provar que você não é não existente. Parabéns, você acabou de provar uma negativa. A parte mais legal é que você pode fazer esse truque com absolutamente qualquer proposição. Prove que P é verdadeiro, e você pode provar que P não é falso.

Algumas pessoas parecem pensar que você não pode provar um específico tipo de alegação negativa, a de que uma coisa não existe.  Assim, é impossível provar que Papai Noel, unicórnios, o Monstro do Lago Ness, Deus, elefantes rosas, armas de destruição em massa no Iraque, e o Pé-grande, não existem. Claro, isso depende do que se tem em mente por “prova”. Você pode construir um argumento dedutivo válido com todas suas premissas verdadeiras que produz a conclusão de que não existem unicórnios? Claro. Aqui vai uma, utilizando o procedimento de inferência válida de modus tollens:

  1. Se unicórnios existiram, logo há evidência no registro fóssil.
  2. Não há evidência de unicórnios no registro fóssil.
  3. Portanto, unicórnios nunca existiram.

Alguém pode contestar que isso foi um pouco rápido demais. Afinal, Eu não provei que as duas primeiras premissas eram verdadeiras. Eu apenas afirmei que são. Bem, certo. Entretanto, seria um erro crasso insistir que alguém deve provar todas as premissas de qualquer argumento. Entenda por quê. A única forma de provar, digamos, que não há evidências de unicórnios no registro fóssil, é dando um argumento para aquela conclusão. Claro, ter-se-ia que provar as premissas daquele argumento dando outros argumentos, e, em seguida, provar as premissas desses outros argumentos, ad infinitum. Quais premissas nós deveríamos aceitar de mão beijada e quais precisam ser previamente demonstradas, é uma questão de longo debate entre epistemologistas. Mas uma coisa é certa: se a coisa a ser provada necessita que infinitas premissas sejam provadas primeiro, nós não vamos provar praticamente nada, positiva ou negativa.

Talvez as pessoas queiram dizer que nenhum argumento indutivo vai conclusivamente, indubitavelmente, provar uma proposição negativa acima de qualquer dúvida possível. Por exemplo, imaginamos que alguém argumente que nós vasculhamos o mundo atrás do Pé-grande, não achamos nenhuma evidência crível de sua existência, e, portanto, não existe Pé-grande. Um argumento indutivo clássico. Um defensor da fera pode sempre dizer que ela é reclusa, e pode apenas estar se escondendo próximo às árvores. “Você não pode provar que ele não está!” (até que a busca pela árvore também não dê em nada). O problema aqui não é que argumentos indutivos não nos darão certeza sobre alegações negativas (como a não existência do Pé-grande), mas que argumentos indutivos não nos darão certeza sobre praticamente nada, positiva ou negativa. Todos os cisnes observáveis são brancos, portanto, “todos os cisnes são brancos” parecia um argumento indutivo muito bom até o descobrimento de cisnes negros na Austrália.

A própria natureza de um argumento dedutivo é tornar a conclusão provável, mas não certa, de acordo com a veracidade das premissas. Isso é o que é um argumento indutivo. Mas é melhor que não descartemos a indução por não obter certeza dela. Por que você acha que o sol nascerá amanhã? Não por causa da observação (você não pode prever o futuro!), mas porque isto é o que sempre ocorreu no passado. Por que você acha água sairá da torneira em vez de chocolate? Por que você acha que sua casa estará no mesmo lugar de quando você saiu? Por que você acha que o almoço vai te alimentar em vez de matar? Novamente, porque é assim que as coisas sempre foram no passado. Em outras palavras, nós usamos inferências — indução — de experiências passadas em todos os aspectos das nossas vidas.  Como apontou Bertrand Russell, a galinha que espera ser alimentada quando vê o trabalhador do campo se aproximando, pois isso é o que sempre ocorreu no passado, terá uma grande surpresa quando, em vez de receber, se tornar o jantar. Mas se a galinha tivesse rejeitado definitivamente o pensamento indutivo, então toda aparição do trabalhador seria uma surpresa.

Então por que as pessoas insistem que não se pode provar uma negativa? Eu penso que é o resultado de 2 coisas. (1) um reconhecimento de que a indução não é hermética e infalível, e (2) um desejo desesperado de seguir acreditando no que acredita, mesmo se toda evidência for contrária. Por isso que as pessoas continuam acreditando em abduções alienígenas, mesmo quando os discos voadores sempre acabam sendo balões de temperatura, jatos furtivos, cometas, ou muito álcool. “Você não pode provar uma negativa. Você não pode provar que não existem abduções alienígenas!”. Na verdade, significa: seu argumento contra alienígenas é indutivo, logo não incontestável, e, como eu quero continuar acreditando em alienígenas, eu vou descartar o argumento, não importa quanto esmagadoras são as evidências contrárias, e não importa quão diminutas são as chances de abduções extraterrestres.

Se vamos descartar argumentos indutivos porque produzem conclusões que são prováveis, mas não definitivas, então estamos fritos. Apesar de sua falibilidade, a indução é vital em todos os aspectos de nossas vidas, do mundano até a ciência mais sofisticada. Sem indução, não sabemos nada sobre o mundo fora nossas percepções imediatas. Então é melhor manter a indução, apesar de suas “falhas”, e usá-la para desenvolver tanto crenças negativas quanto positivas. Você pode provar uma negativa — pelo menos do modo como pode provar qualquer outra coisa.

 

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