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Como adiantei no post “Lênin disse isso”, escrevo esse texto sobre seis frases famosas jamais proferidas (ou incorretamente atribuídas) por personagens históricos. Baseio-me principalmente em dois livros (tradução livre, sempre que aqui transcritos): “They never said it: a Book of Fake Quotes, Misquotes, and Misleading Attributions” (“Eles nunca disseram: um livro de citações falsas, errôneas e enganosas”), publicado pela Universidade de Oxford, escrito por Paul F. Boller Jr. (falecido em 2014, era historiador, Ph.D. por Yale e Professor Emérito da Texas Christian University) e John George Jr. (Ph.D., professor aposentado de Ciências Políticas na Central State University); e “Nice Guys Finish Seventh: False phrases, spurious sayings, and familiar misquotations” (Caras legais terminam em sétimo: frases falsas, provérbios espúrios e familiares citações mal atribuídas”) do escritor americano Ralph Keyes (não indicarei as páginas dos trechos usados deste livro, pois não indicadas na edição kindle; apenas aparecem as “posições”).

Luís XIV — L’État c’est moi (“O estado sou eu”)

Reza a lenda que o jovem Rei adentrou o Parlamento, ainda vestido com sua roupa de caça, interrompeu o debate e decretou: o estado sou eu.

Baseados nos renomados historiadores Maurice Ashley e John C. Rule, especializados na França daquele período, George e Boller (página 95) afirmam que não há evidências de que o monarca tenha dito aquilo.  Entretanto, Luis XIV, absolutista, certamente acreditava nas palavras que lhe foram incorretamente atribuídas.

De igual modo, Ralph Keyes atesta a falsidade, e aponta Voltaire como um dos primeiros propagadores da lenda.

Winston Churchill — Quem não foi socialista aos vinte anos não tem coração; quem continua sendo aos quarenta não tem cérebro

Outras versões: “Se você não é de esquerda aos 20 anos, não tem coração. Se não se torna um conservador aos 40, não tem cérebro” e “Se você não é um liberal aos 25, você não tem coração. Se você não é um conservador aos 35, você não tem cérebro”.

Imagem retirada de: https://en.wikipedia.org/wiki/Winston_Churchill

Imagem retirada de: https://en.wikipedia.org/wiki/Winston_Churchill

O próprio instituto “The Churchill Centre”, criado em 1968 para preservar o legado do estadista inglês, em sua página oficial, na área de citações falsamente atribuídas a Churchill, explica por que ele não proferiu esta frase:

‘Se você não é um liberal aos 25, você não tem coração. Se você não é um conservador aos 35, você não tem cérebro.’

Não há registo de alguém ter ouvido Churchill dizer isso. Paul Addison da Universidade de Edimburgo fez o seguinte comentário: ‘Certamente, Churchill não pode ter usado essas palavras que lhe foram atribuídas. Ele era um conservador aos 15 e um liberal aos 35! E ele teria falado de forma tão desrespeitosa sobre Clemmie (nota do autor: Clementine, esposa de Churchill), que é amplamente tido como uma liberal por toda a vida? ‘.

Desse modo, surge a pergunta: qual a origem dessa citação? O escritor Ralph Keyes explica:

Uma citação órfã às vezes atribuída a Georges Clemenceau é: Qualquer homem que não é um socialista aos vinte anos, não tem coração. Qualquer homem que ainda é um socialista aos quarenta anos, não tem cabeça. A razão mais provável é a de que Bennet Cerf uma vez relatou a resposta de Clemenceau ao alerta de um amigo sobre seu filho ser um comunista: ‘Senhor, meu filho tem vinte e dois anos. Se ele não tivesse se tornado um comunista aos vinte e dois, eu o teria deserdado. Se ele continuar um comunista aos trinta, eu farei isso então”’  George Seldes, posteriormente, citou Lloyd George como tendo dito: ‘Um jovem que não é socialista, não tem coração; um velho que é socialista, não tem cabeça’. A versão mais recente dessa observação é atribuída ao historiador e estadista da metade do século dezenove Fraçois Guizot: ‘Não ser um republicano aos vinte é prova da falta de um coração; ser um aos trinta é prova da falta de cabeça”’ Variações deste tema posteriormente foram atribuídas a Disraeli, Shaw, Churchill, e Bertrand Russell.

 Galileu Galilei — Eppur si muove (“no entanto, ela se move”)

 galileu

O astrônomo italiano teria realmente sussurrado essas palavras frente ao Tribunal da Inquisição, logo após renegar sua visão heliocêntrica? Não, segundo explanam Boller e George (página 31):

Não há evidência de que Galileu, teimosamente, sussurrou essas palavras desafiadoras após ser forçado pela Inquisição em 1633 a abjurar sua crença de que a terra girava em torno do sol. Foi um escritor francês, escrevendo mais de um século após a morte de Galileu, quem primeiro colocou essas palavras na boca do grande cientista.

Também nesse sentido, Keyes afirma que nenhum estudioso sério da vida do astrônomo lhe imputa aquela afirmação.

Voltaire — Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo

Imagem retirada de: http://imguol.com/c/noticias/2015/05/21/voltaire-1432238145035_200x285.jpg

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Ambos os livros supramencionados contam a mesma versão da história, qual seja, a frase foi escrita pela escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall na sua biografia de 1906 sobre o filósofo francês intitulada “The Friends of Voltaire” (“Os Amigos de Voltaire. Assim explanam Boller e George (páginas 124-126):

Essa é uma das mais famosas citações de Voltaire e uma das mais populares citações entre os libertários civis americanos. Mas Voltaire jamais proferiu essas palavras; e não há razão para presumir que ele tenha alguma vez tentado lutar até a morte por Claude Adrien Helvetius, o filósofo francês por quem ele teria feito esse célebre testemunho.

(…) De acordo com Evelyn Hall, em 1758, Helvetius publicou ‘De l’esprit’, estabelecendo a ideia de que o egoísmo e as paixões eram a mola principal das ações humanas e que inexistiriam vícios e virtude. Voltaire não se impressionou com o livro, mas as autoridades civis e eclesiásticas ficaram indignadas. O livro foi condenado pelo Parlamento de Paris, atacado pelo Papa, censurado por Sorbonne, queimado publicamente pelo carrasco, e teve seu privilégio de publicação revogado. Aflito, Helvetius insistiu que escrevera “De l’esprit” inocentemente, e que não tinha ideia do efeito que produziria. O Parlamento finalmente aceitou sua retratação, mas retirou sua intendência e o exilou por dois anos em Vore.

‘Quanta confusão por uma omelete!’, Voltaire afirmou quando soube da queima do livro. A versão de Evelyn Hall sobre o episódio concluiu: ‘Eu desaprovo o que você diz, mas defendo até a morte os eu direito de dizer’ era sua atitude agora’. Ela não disse que Voltaire falou ou escreveu isso; ela apenas resumiu o que pensou ser a atitude geral de Voltaire e colocou entre aspas. Questionada sobre isso em 1935, ela explicou ‘Eu não pretendi sugerir que Voltaire usou literalmente essas palavras, e ficaria surpresa se fossem encontradas em algum dos seus trabalhos’. A citação de ‘defender até a morte’, embora espúria, provavelmente resume de forma suficientemente correta a atitude de Voltaire em relação a Helvetius, e não houve vontade por parte de Evelyn Hall de enganar ninguém.

John Adams — Esse poderia ser o melhor dos mundos possíveis se não existisse religião

Imagem retirada de: http://f.tqn.com/y/create/1/S/w/k/M/-/JohnAdamsTH.jpg

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Alguns sites de militância ateísta utilizam esta citação para atacar a religião e demonstrar um suposto antiteísmo de John Adams, um dos “founding fathers” e segundo Presidente da história dos Estados Unidos. Numa carta a Thomas Jefferson em 19 de abril de 1817, ao comentar sua leitura de alguns livros polêmicos antirreligiosos, Adams realmente escreveu aquela frase, todavia apenas para repudiá-la e exaltar a religião (transcrito e traduzido do livro de Boller e George, página 3):

Vinte vezes, durante minhas leituras noturnas, estive preste de irromper, ‘esse seria o melhor dos mundos possíveis, se não existisse a religião!!’ Mas nessa exclamação, eu seria tão fanático quanto Bryant e Cleverly. Sem religião, esse mundo serial algo indigno de ser mencionado em público — quero dizer, um inferno.

Nicolau Maquiavel — Os fins justificam os meios

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O pensador italiano jamais escreveu esta máxima. Contudo, ela reflete seu pensamento exposto no capítulo XVIII do clássico “O Príncipe”:

Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar.

 

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