Para entender o posicionamento de Pelé em campo, imprescindível explicar a formação tática básica do futebol brasileiro durante o seu reinado. Quase todas as esquipes nacionais atuavam num 4-2-4, assim organizado: goleiro; lateral direito, quarto-zagueiro, zagueiro central e lateral esquerdo; médio-volante e meia-armador (ou meia-direita); ponta-direita, centroavante, ponta de lança (ou meia-esquerda) e ponta-esquerda (sobre a origem dos termos quarto-zagueiro, meia-direita, entre outros, recomendo a leitura de artigo assinado pelo experiente jornalista Alberto Helena Júnior).
A atribuição mais tradicional dos números do meio de campo e ataque era a seguinte: 5, volante; 8, meia-armador; 7, ponta-direita; 9, centroavante; 10, ponta de lança; e 11, ponta-esquerda. Quanto ao número 10, importante informar que apenas virou sinônimo do ponta de lança após Pelé usá-lo na Copa de 1958 (os números do Brasil naquele torneio foram definidos por sorteio).
O Botafogo, campeão brasileiro em 1968, e o Santos, campeão de tudo em 1962, seguiam à risca aquela numeração (no entanto, alguns times, como o Cruzeiro, invertiam os números 8 e 10: Tostão, ponta de lança, jogava com a 8; Dirceu Lopes, meia-armador, usava a 10):
Nesta formação clássica, o principal organizador do time era o meia-armador (responsável pela armação de jogadas; normalmente, fazia poucos gols). Entretanto, o ponta-de-lança (frequentemente, o artilheiro do time), além de ir ao ataque para tabelar com o centroavante, exercia uma dupla função, porque também recuava para organizar o jogo ao lado do meia-armador, fazendo a famosa dupla “8 e 10” no meio de campo
Ilustrando o que foi relatado acima, o Santos de 1962 (belo trabalho feito pelo excelente site “Imortais do futebol”; eu, pessoalmente, acrescentaria uma seta para trás em Pelé, indicando o seu eventual recuo em alguns momentos da partida):
Pode-se perceber que, durante boa parte da partida, o ponta de lança jogava atrás de três atacantes (dois pontas e um centroavante), sobretudo quando voltava à armação. Quando subia ao ataque, fazia dupla com o jogador mais avançado, o centroavante.
Poucas pessoas sabem que essa divisão de posições permaneceu majoritária no futebol brasileiro até o final dos anos 80. Em 1988, ela ainda era utilizada para a premiação da “Bola de Prata” da Revista Placar (percebam que o grande Zico figura na lista como ponta de lança; atenção, não é a classificação final do ano):
Apenas em 1989 (imagem abaixo), a publicação passou a adotar sua seleção com dois “Meias” (unindo meia-armador e ponta de lança na mesma posição; por exemplo, Cuca e Toninho, pontas de lança em 88, figuram como meias em 89) e três atacantes (pontas e centroavantes juntos na mesma categoria). A partir de 1996, um atacante deu lugar a outro volante na seleção da revista — os dois atacantes das equipes eram, geralmente, um segundo-atacante e um centroavante.
SELEÇÕES DE 1958 E 1970
Aquela base tática, do Santos e Botafogo, foi mantida durante os anos 60, 70 e 80, mas não deixaram de existir mudanças, inovações e adaptações, no período, sobretudo na seleção brasileira em Copas.
Em 1958, Zagallo, ponta-esquerda, foi recuado para o meio, e o Brasil atuou num 4-3-3.
Em 1970, como explica o competente jornalista do UOL, André Rocha:
Numa conversa com André Rocha, Zagallo, técnico do Brasil em 70, expôs outra característica daquele esquadrão inesquecível: “Nos defendíamos no 4-5-1. Só o Tostão ficava na frente. Mas até ele voltava, se fosse preciso“.
Costuma-se afirmar que a seleção de 70 jogava com cinco camisas “10”. Em suas equipes, Rivellino, Gérson (no São Paulo, à época), Jairzinho e Pelé, atuavam com aquele número. Contudo, em relação ao que realmente significava ser um “10”, o Brasil possuía quatro (Gérson era meia-armador): Rivellino (jogava também na função de meia-armador, porém ele venceu sua única bola de prata como ponta de lança), Tostão (embora vestisse a 8 no Cruzeiro), Pelé, e Jairzinho (“Eu era um ponta de lança, um camisa 10”; Rogério era o ponta-direita do Botafogo).
POSIÇÃO DE PELÉ EM CAMPO
Alguns jornalistas e fãs de futebol, quando falam num “autêntico camisa 10”, costumam mencionar Maradona, Zidane, Zico, Platini, entre outros. Poucos classificam Pelé dessa forma. Todavia, a partir das informações aqui prestadas (reforçadas posteriormente), acredito ser possível afirmar que Pelé era um “autêntico camisa 10”, como foram Zico, Platini e Maradona. O leitor mais atento percebe que não citei Zidane. Sim, para mim, Zizou, na tradição brasileira, se assemelhava mais ao antigo camisa 8, o meia-armador. Vejamos: principal organizador de suas equipes, o francês não costumava entrar muito na área adversária e fazia poucos gols (média de 0,19 por jogo na carreira). Por outro lado, jogadores do estilo de Zico, Pelé, Platini e Maradona, ajudavam na armação, mas também eram excepcionais artilheiros com médias bastante superiores a Zizou em jogos oficiais: Platini e Maradona com pouco mais de 0,5 por partida; Zico, aproximadamente 0,7; e Pelé, 0,93. Por isso que considero um equívoco falar num “autêntico camisa 10”, como alguém para ser “o cérebro do time” (principal armador das jogadas), pois essa sempre foi a característica do “autêntico camisa 8”.
Ademais, outras evidências indicam que Pelé jogava na mesma posição de Zico e Maradona. Ambos craques dos anos 80 eram chamados de “ponta de lança” no Brasil. Em relação a Zico, revejam a imagem da bola de prata de 1988 e o esquema tático do Flamengo acima. Quanto a Maradona, César Luis Menotti, técnico da Argentina campeã da Copa do Mundo em 1978, disse as seguintes palavras, relatadas pela “Revista Placar” no final daquele ano (imagem abaixo — na matéria, o jovem Diego é chamado de ponta de lança): “No atual estágio do futebol mundial, Maradona é Pelé. Há uma diferença na estrutura física, mas muita semelhança no espaço de terreno que joga, nos lançamentos que faz. E, note bem, trata-se de um goleador”.
Em suas equipes, Maradona e Zico atuaram sempre avançados, atrás apenas de um ou dois atacantes. O argentino, por exemplo, na Copa de 1986, ponto mais alto de sua carreira, apenas tinha Valdano à sua frente; no Napoli, eram dois atacantes, Careca e Carnevale. Outrossim, Zico e Maradona eram capazes de exercer a função de segundo-atacante.
Vejam abaixo como eram parecidas as posições dos três craques em campo
Relevante também, para reforçar a comparação de Pelé com Zico e Maradona, o testemunho do lendário Tostão, companheiro do Rei em 70 e, atualmente, brilhante colunista:
Ora, Tostão denomina Pelé, Maradona e Zico como pontas de lança. Embora tenha utilizado a palavra “atacante” para descrever a posição, fica claro, por sua explicação, que aqueles jogadores possuíam funções semelhantes aos meias-atacantes recentes como Kaká e Rivaldo.
Além do mais, importante ler as palavras de Jairzinho, furacão do mundial no México: “Eu era um ponta de lança, um camisa 10 (…) O Botafogo, na época, tinha o Roberto Miranda como centroavante. O Pelé, no Santos, tinha o Coutinho. No Cruzeiro, o Evaldo. E assim por diante. Nenhum de nós era atacante de fato”.
Pois bem, vimos que Pelé era um ponta de lança, com funções semelhantes a Zico e Maradona. Todos esses três grandes futebolistas armavam bastantes jogadas e anotavam muitos gols. Logo, considero possível concluir que a nomenclatura contemporânea mais apropriada para Pelé corresponde a de meia-atacante, um jogador ativo no meio e ataque, como foram recentemente Kaká e Rivaldo. Corroborando esses argumentos, essencial informar que o próprio Pelé se denominou em sua autobiografia como “um meia que atacava” (Rio de Janeiro, Sextante, 2006, página 42), e falou, em entrevista, a respeito de sua semelhança com Kaká:
Igualmente nessa perspectiva, Cláudio Adão, ótimo centroavante nos anos 70 e 80, companheiro de Pelé no início dos anos 70, recentemente, explicou, em entrevista na ESPN Brasil, por que teve que mudar de posição no início de sua carreira (adicionei esta citação em 19/07/2016):
Pelé não pode ser considerado um atacante puro, pois, ainda que entrasse constantemente na grande área adversária para finalizar, recuava com maior frequência que os grandes atletas desta posição nos tempos atuais (Messi, por exemplo, diferentemente de Pelé, já exerceu inclusive a função de atacante mais avançado de sua equipe, “o falso 9”). Nesse sentido, observe o mapa abaixo feito pelo jornal francês L’Equipe, demonstrando onde Pelé tocou na bola durante a final da copa de 70:
Entretanto, várias seleções mundiais de todos os tempos, elaboradas por publicações diversas, costumam ter Pelé como atacante, ou, pasmem, centroavante. Não era assim durante sua carreira, como se vê nas seleções anuais dos anos 60, escaladas à época pelo jornalista inglês Eric Batty, na renomada “World Soccer Magazine”. Seguem 1962 e 1966, respectivamente, como exemplos (imagens retiradas do blog “Beyond the Last Man”):
Batty, estranhamente, escolheu a superada formação 2-3-5, na qual, entre os “cinco atacantes”, dois exerciam funções próximas as dos meias contemporâneos (jogando atrás dos três atacantes, como leciona Alberto Helena). Onde Pelé foi escalado? Justamente na posição que hoje corresponderia a de meia-atacante, atrás de três atacantes. Contraditoriamente, em 2013, a World Soccer, ao realizar uma eleição entre jornalistas de todo o planeta para escolher a seleção mundial de todos os tempos, demonstrou desconhecer sua própria história, porque colocou Pelé na mesma seção de centroavantes como Romário, Ronaldo, Van Basten e Gerd Müller. Muitos jornalistas cometeram o pecado de escalar Pelé como atacante mais avançado em seus “dream teams”. Por outro lado, o site da Globo, corretamente, colocou Pelé entre os meias (junto a nomes como Zico, Kaká, Rivaldo e Ronaldinho) na eleição popular online da “Seleção brasileira de todos os tempos”; o craque santista foi o jogador mais lembrado pelos internautas com mais de 306 mil votos.
Finalmente, a evidência mais significativa de todas: numa entrevista em 2012 ao Portal da Copa, o Rei expressamente afirmou que jogava no meio de campo (transcrição de sua fala abaixo do vídeo):
“Eu que fazia o homem de meio de campo. Eu sempre fazia o terceiro homem; eu nunca fui o centroavante avançado. Eu sempre vinha do meio de campo, porque eu ajudava a dar combate; todo mundo vê, é só ver”.
Ainda resta uma dúvida: qual função Pelé exerceria nos esquemas táticos mais utilizados atualmente?
O Rei definitivamente não seria um meia puro, como Iniesta, Ozil e Fabregas, jogadores semelhantes aos meias-armadores (camisa 8) do passado, principais organizadores e pouco goleadores. Em sua posição original, Pelé poderia atuar num 4-2-3-1 como um dos três meias (preferencialmente, o mais centralizado) ou como único meia-atacante do time (atrás de dois atacantes) num 4-3-1-2. Ainda que não ideal, ele também seria eficaz jogando na função de segundo atacante (em alguns tipos de 4-4-2 ou 3-5-2), ou até mesmo como um atacante de lado num 4-3-3 (não um ponta, mas alguém que iria muito ao centro de campo para participar da armação de jogadas, como Messi, recentemente, no Barcelona).
Portanto, em resumo, concluo que Pelé foi um meia-atacante, autêntico camisa 10.
BÔNUS:
Recomendo esse excelente vídeo com 100 golaços do Rei, editado pelo canal do youtube, “Futebol Nacional”:
PS: EDITADO EM 17 DE JANEIRO DE 2024: Li alguns comentários online, sobretudo de estrangeiros, argumentando que Pelé apenas teria se tornado um verdadeiro camisa 10 no final de sua carreira, principalmente na Copa de 70. Para refutá-los, ofereço o vídeo abaixo de 1969, no qual um jornalista pergunta ao Pelé sobre o desejo de Saldanha (então novo técnico da Seleção Brasileira) de escalá-lo “lá na frente”; o Rei demonstra certo descontentamento e afirma que sempre jogou “vindo de trás”:
Transcrição:
Repórter: Pelo esquema tático que o Saldanha já definiu para os jornalistas, você vai jogar lá na frente, dando trombada. Parece que você não gosta desse estilo de jogo.
Pelé: Não é que eu não goste. (…) O que acontece é que já joguei, jogo por 15 anos vindo de trás, e chegar e mudar minha maneira de jogar, assim de uma hora para outra, não é possível.
Gabriel de Araújo Dias
Meu amigo, parabéns pelo texto! Você escreve muito bem!
Um abraço!
Otávio Pinto
Obrigado, Gabriel!
Abraço.
Bart
Acho que a “fake news” histórica se deu porque os gols do rei foram muito mais propalados para a posteridade do que as assistências. Primeiro porque os registros de assistências são bem mais recentes do que os de gols.
O exemplo mais claro é que houve uma solenidade para o gol mil do Pelé, mas não para a assistência 1000 (ou 500, não sei estimar quantas deu o rei em sua carreira).
Em todo caso não me parece de todo errado, quando se trata de fazer escalações de todos os tempos, colocar o Pelé no ataque, pois a finalização do rei era sensacional, tinha força, precisão, drible e inclusive a alternância para o passe.
Outros atacantes, mesmo que bons em passes, não eram tão eficientes fora do ataque, ou centroavância. De modo que fica mais fácil colocar o rei em outra posição.
Na minha seleção de todos os tempos o Pelé seria o atacante pela esquerda (4-3-3), podendo trocar de posição com o Zico, tendo o Garrincha na direita e Romário na esquerda. Mesmo não sendo a posição in natura, acho que ele o faria como ninguém
Certa vez no Youtube vi uma assistência de bicicleta do Pelé para uma atacante que fazia a ultrapassagem, acho que foi a mais sensacional assistência que já vi. Abraço.
Otávio Pinto
Pelé certamente poderia jogar nessa posição. E concordo que não dão atenção às suas assistências.
Bart
* Correção – Romário no centro (centroavante)
João Atílio de Lucca
Gostaria de ler um sobre a do Messi. Ele parece mais um centroavante da direita apesar dele ser colocado como ponta-direita. Já que é canhoto ele só ficaria como ponta mesmo no lado esquerdo, onde ele acaba fazendo mais assistências. Foi o que vim pensando. Seria bom uma análise do tipo dessa do Pelé para eu entender melhor o Messi.
Grande análise.