Resolvi postar alguns dos meus contos aqui no blog. Começo por esse que trata de um assunto bastante sensível. Espero que gostem!
HÁ MONSTROS ENTRE NÓS
Ninguém está a salvo. Quando menos se espera, seres aterrorizantes, até então imperceptíveis, invadem mundos aparentemente perfeitos e corrompem o que jamais deveria ter sido corrompido. Deus, ajude-nos, há monstros entre nós e eles sabem o que fazem!
Infelizmente, há pesadelos reais mesmo em reinos dos sonhos. Numa dessas terras maravilhosas, vivia uma radiante garotinha de oito anos que nascera e crescera com todo amor e segurança necessários a uma criança. Seus pais adoravam dar festas belíssimas que reuniam pessoas de todas as idades. Havia diversão de sobra para jovens e adultos.
Num daqueles eventos, a garotinha ouviu uma conversa entre seu pai e um dos seus mais próximos, queridos e antigos amigos, desde a época da academia de cavaleiros:
— Você tem uma família linda. A garotinha já está com quantos anos? — o colega perguntou.
— Obrigado, meu amigo. Minha princesa tem oito anos — respondeu o orgulhoso pai.
— Que coisa maravilhosa! Parabéns!
A garotinha adorou ouvir aquilo. Afinal, quem não gosta de elogios?
Um dia, ao passear, como de costume, no bosque florido, ela escutou a voz daquele amigo do seu pai, dizendo:
— Garotinha, sou eu. Venha aqui.
Inocentemente, ela caminhou em sua direção e disse “oi”. Ele, com uma mágica, fez aparecer uma porta no meio da mata, e disse:
— Entra aqui comigo. Te darei vários presentes e mostrarei meu armário cheio de chocolates. — Uma vez que reconheceu aquele homem, o amigo de seu pai, a garotinha obedeceu e passou pela porta. Em seguida, eles foram transportados para um lugar horrível. Estranhamente, não havia nem sol, lua ou estrelas naquele ambiente sombrio. Eram trevas, apenas trevas. A garotinha estava bastante assustada. As únicas coisas que conseguiu ver foram dois olhos imensos de uma fera aterrorizante, que falava:
— Malvinda ao mundo da infelicidade, garotinha. Aqui há apenas tristeza, sofrimento e lágrimas.
A garotinha, assustada, reconhecendo a voz, perguntou:
— Você não é amigo do papai? Quando você ficou assim? O que aconteceu?
O monstro soltou uma gargalhada horrível e respondeu:
— Eu sempre tive essa forma. Apenas disfarçava minha verdadeira natureza. Conquistei a confiança dos seus pais para me aproximar de você. — A seguir, ele transformou suas próprias mãos em tochas de fogo azul escuro, incapazes de iluminar o local, porém suficientes para mostrar uma parte do seu horrendo e disforme corpo.
A menininha, aos prantos, gritou:
— Eu quero o papai e a mamãe! Me tira daqui!
— Chore mais garotinha, chore mais. Eu me alimento de sua deliciosa tristeza. Ninguém salvará você, e seus pais não podem saber que está aqui, porque se descobrirem, eu os destruirei. Saiba de uma coisa: tudo o que acontecerá aqui é normal; todo mundo do reino já passou por isso; apenas não contam para ninguém. A infelicidade é importante. Este será nosso pequeno segredo. — Rispidamente, ele agarrou a garotinha à força e a carregou a um castelo maligno.
A grande criatura horripilante a jogou em algo que parecia ser uma cela, levemente iluminada por uma fraca vela escura (a única luz em todo castelo). Na parede, havia uma cabeça morta de um palhaço assustador com a boca aberta. Logo abaixo, um pedaço de madeira com uma frase talhada: “Sou o palhaço do mal. Estou aqui para te atormentar e coletar lágrimas e infelicidade”. Quanto mais desolada a garotinha ficava e quanto mais lágrimas caiam do seu inocente rosto, fumaças brancas saíam de seu corpo e entravam pela boca do palhaço.
Após algumas horas, ela pegou no sono e, pouco tempo depois, acordou sob o som da voz de um garotinho:
— Acorda! Acorda! Você tá bem?
A garotinha olhou assustada e respondeu:
— Não. Quero o papai e a mamãe. Quem é você? Onde estou?
— Você tá na terra da infelicidade. O monstro também me trouxe para cá. Ele engole a tristeza da gente; precisa dela para continuar nessa forma feia e criar monstrinhos que usam uma roupa e ficam iguaizinhos a gente. Quando ele dorme, o palhaço pega infelicidade para ele. Mas quando acorda, ele leva a gente daqui e dói mais ainda…
— Eu tenho muito medo. O que ele faz quando leva a gente?
— Não sei direito o que é. Só sei que é errado e triste, muito triste. Cala a boca! Ele tá vindo, não pode ouvir a gente conversando. Acho que vai fazer seu monstrinho agora.
— Garotinha, tudo mal? Espero que ainda pior. Venha — deu sua risada maligna e arrastou a garotinha para outro aposento.
Lá, um caldeirão cheio de fumaças, idênticas às que entravam no palhaço, borbulhava. Depois que o monstro fez aquela maldade inexplicável, uma pequena criatura surgiu do caldeirão.
— Eis o monstrinho. Disfarçado de garotinha, ele irá ao seu reino para que seus pais não percebam o que aconteceu com você — disse o repulsivo ser.
A garotinha ficou aterrorizada ao ver aquela coisa ficar idêntica a ela.
Partiu então o monstrinho em direção à casa da garotinha. Chegando lá, os pais não viram nada de errado, pois não havia passado uma quantidade significativa de tempo. Simplesmente acharam que ela vinha de seu rotineiro e inocente passeio no bosque. Nem desconfiaram do fato dela ter ido direto ao banho, sem primeiro abraçá-los.
Embora parecesse perfeita, a fantasia de garotinha, além de própria natureza da pequena criatura, apresentava vários problemas que poderiam estragar o disfarce.
Para não demonstrar seu fedor natural de monstrinho, ele tinha que tomar banho de duas em duas horas, com excessiva quantidade de sabão e shampoo. Não podia tirar a roupa em frente dos pais da garotinha, pois havia algumas imperfeições em partes da fantasia. O material do disfarce incomodava, fazendo com que ele coçasse principalmente os braços, causando pequenas feridas no local. Ele também não suportava a comida dos humanos; por isso se alimentava raramente. Ainda, pois estranho à sua formação e comum na terra da infelicidade, o diminuto ser medonho era incapaz de sorrir.
Outros problemas surgiam à noite. O suor do monstrinho fedia a urina humana e, como era demasiadamente quente dormir sob a fantasia, sua cama ficava toda molhada, parecendo que a garotinha havia feito xixi. Ele também roncava de uma maneira assustadora; pareciam gritos de criança durante um terrível pesadelo.
Com o passar do tempo, a mãe começou a perceber tudo isso. Aproximou-se do pai da garotinha e disse:
— Estou achando a nossa garotinha diferente. Come tão pouco, toma banho muitas vezes ao dia, voltou a fazer xixi na cama e tem pesadelos horríveis. Ela parece tão triste…
— Normal, criança é desse jeito mesmo. Isso passa — disse o pai, enquanto lia um jornal.
— Verdade. Deve ser coisa da minha cabeça. Exagero de mãe.
— O garotinho do reino vizinho também está assim. Tem a mesma idade da nossa garotinha. Normal. Relaxe.
Passadas algumas semanas, os pais não mais desconfiavam, principalmente pelo fim das feridas (a fantasia parou de coçar), e continuavam tratando a “garotinha” com extremada ternura.
E o monstrinho, como estava? Ele, nascido sob lágrimas e sofrimento, tinha nojo da felicidade e sentia repulsa do carinho dos pais da garotinha. Contudo, com o tempo, algo estranho aconteceu: ele começou a acostumar-se e até gostar daquele sentimento. Essa jornada, em razão da sua origem, demonstrava a veracidade de uma frase de um grande trovador do reino, emoldurada na sala de jantar: “O amor é o único êxtase. Tudo o mais são lágrimas”. Aquele ser melancólico percebera no amor a única e verdadeira felicidade. Um esboço de sorriso começava a aparecer em seu rosto…
Nascia e amadurecia naquele minúsculo e repulsivo bichinho a vontade de contar a verdade. Todavia, ele sentia vergonha e ficava com pavor da reação dos pais da garotinha; poderiam culpá-lo por tudo. “Mas eu não tive escolha. Foi culpa do monstro, tão horrível e traiçoeiro” — pensou.
Um dia, quando os pais da menina, novamente, expressaram seu afeto, ele, enfim, criou coragem e disse:
— Eu sou um pequeno monstrinho sujo. Não mereço ser amado, pois não posso mais ser sua garotinha. Ela está presa num mundo das trevas com o terrível monstro e vocês ainda podem salvá-la!
— Que maluquice é essa? — Não invente algo tão horrível, garotinha — falaram quase concomitantemente, mãe e pai.
— É a verdade! Aquele seu amigo dos tempos da academia de cavalaria é um monstro. Vocês têm que detê-lo para salvar a garotinha — respondeu o monstrinho.
Os pais permaneceram céticos. Apenas após a diminuta criatura medonha retirar sua fantasia de garotinha e explicar tudo detalhadamente, eles realmente acreditaram. Ficaram assustados e depois revoltados e consternados por ter ignorado os evidentes sinais de que algo estava errado.
— Não se preocupem. Vocês foram muito bons, carinhosos e pacientes comigo. Por isso, me senti seguro para revelar o que aconteceu. Eu não tive culpa. Foi o monstro. Eu vou levar vocês ao seu castelo maligno. Eu não sei fazer a porta mágica, mas conheço um longo caminho para ir até lá.
Assim, o pai seguiu a jornada junto ao pequeno ser fedorento e aos melhores guerreiros do reino. Sábios também acompanhavam o grupo, tentando compreender o horripilante vilão, mediante relatos do monstrinho.
Após uma semana, chegaram à terra da infelicidade. Carregando muitas tochas, iluminaram aquele ambiente sombrio e conseguiram, facilmente, alcançar o castelo e avistar a garotinha e o garotinho em duas celas. Ambos estavam muito assustados…
Estranhamente, tudo parecia facílimo. Eis que, subitamente, o monstro malévolo apareceu e, com seus pavorosos olhos arregalados, gritou:
— O que estão fazendo aqui? Destruirei todos vocês! A garotinha e o garotinho me pertencem! Eles quiseram entrar no meu mundo e daqui nunca sairão!
O pai reconheceu a voz e, indignado, questionou:
— Você era meu amigo! O que é isso?
Precedido por uma gargalhada tenebrosa, o monstro respondeu:
— Sempre fui assim, seu estúpido. Você! — gritou, apontando para o monstrinho – Não sabe que se eu for destruído, deixará de existir?
— Conheci o amor, o carinho e a confiança. Desapareço contente se for para salvar a felicidade.
A colossal besta parecia confusa e atordoada com a reposta. Na hora que os guerreiros, aproveitando a distração, o atacavam com lanças iluminadas, o monstrinho partiu ao resgate da garotinha.
No momento em que o golpe final atingiu o terrível monstro, ele, mesmo enfraquecido, conseguiu dizer preocupantes palavras:
— Não acabou! Seu mundo está repleto de seres iguais a mim. Escondemos facilmente nossa verdadeira natureza. Vivemos geralmente perto das suas crianças: um amigo; um vizinho; primo; tio; ou, inclusive, um pai ou uma mãe. Quando menos esperarem, atacaremos!
— Estaremos preparados, ardilosa e vil aberração! Com ajuda da pequena criatura, nossos sábios estudaram sua vida e desvendaram cada um dos seus segredos. São as trevas que despertam os monstros existentes em pessoas que nem você. Eu sei que sempre foi assim e que há outros à solta, mas, agora, conhecemos a chave para evitar que a monstruosidade se manifeste em outros semelhantes a você: luz, luz em quantidade! Não desistiremos enquanto não iluminarmos todos os locais sombrios como esse. Não há monstro das trevas que resista à aurora! Iluminaremos o mundo! — bradou o pai da garotinha.
O monstro, completamente derrotado, acorrentado pelos soldados, nada mais falou. Nesse mesmo instante, o monstrinho começava a desaparecer. Ao ver o reflexo da garotinha no espelho, ele sorriu pela primeira vez em sua existência. Um sorriso tímido também apareceu no rosto da garotinha, provando que a fera não havia conseguido destruí-la por completo. Restava ainda a esperança de que, com muito amor, paciência, afeição e especial cuidado, um dia ela pudesse ser feliz novamente, e que aquela ferida, ainda tão aberta e dolorida, se transformasse apenas numa cicatriz.
FIM