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No aclamado livro “O idiota” de Fiódor Dostoiévski, célebre escritor russo, seu protagonista, o Príncipe Myshikin, demonstra ser um homem bom, gentil, real seguidor do mandamento cristão de “amar ao próximo como a si mesmo”. Nessa linha, assim o define o crítico literário americano Joseph Frank: “a mais extrema encarnação do ideal cristão do amor que a humanidade pode atingir em tempos presentes”. Devido a sua pureza de coração e imensa bondade, ele é durante a história diversas vezes ridicularizado e tachado de ingênuo, tolo; em suma: “um idiota”.

Em uma passagem marcante da obra, ponto central deste post, a personagem Hippolit ridiculariza uma máxima creditada ao Myshikin:

Príncipe, é verdade que o senhor disse uma vez que a “beleza” salvará o mundo? Senhores — gritou alto para todos —, o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! Mas eu afirmo que ele tem essas idéias jocosas porque atualmente está apaixonado. Senhores, o príncipe está apaixonado; quando ele entrou há pouco eu me convenci disso. Não core, príncipe, vou sentir pena do senhor. Qual a beleza que salvará o mundo? O senhor é um cristão cioso? Kólia afirma que o senhor mesmo se diz cristão.

A personagem principal não responde os questionamentos de Hippolit. Enfim, “A beleza salvará o mundo”: Dostoiévski acreditava nessa máxima? O que ele quis dizer com isso?

Outro livro do mestre pode auxiliar. Em “Os demônios“, através de proclamação da personagem Stiepan Trofímovitch, Fiódor corrobora e fortalece o pensamento anteriormente exposto em “O idiota”, arguindo pela essencialidade primordial da beleza e sua relação com arte (o dramaturgo Shakespeare e o pintor Rafael são aclamados):

Eu proclamo (…) que Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, porque são fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade, e, talvez, o fruto supremo, o único que pode existir. É a forma da beleza já atingida, e sem atingi-la eu talvez não   concordasse em viver. (…) Ora, sabem os senhores, sabem que sem o inglês a humanidade ainda pode viver, sem a Alemanha pode, sem o homem russo é possível demais, sem a ciência pode, sem o pão pode, só não pode sem a beleza — sabem disso, senhores ridentes? —, ela se converteria em banalidade, não inventaria um prego!

Ainda em “Os demônios”, nota na edição da Editora 34 explana que a beleza para o grande escritor russo era personificada pela arte (seja um livro, um quadro, escultura, entre outros):

Palavras semelhantes foram escritas pelo próprio Dostoiévski no artigo “G-bov, e a questão da    arte”: “A necessidade da beleza e da arte que a personifica é inseparável do homem, e sem ela o     homem possivelmente não desejaria viver no mundo”.

Nesse sentido, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, em artigo sobre a frase aqui estudada, nos informa como a beleza e arte eram importantes na vida do autor russo, pois ele, segundo leciona Anselm Grun (Vier Türme Verlag, 2014), visitava anualmente Dresden (Alemanha) apenas “para contemplar na capela a formosa Madona Sixtina de Rafael”. Confira parte essencial da bela lição de Boff sobre a frase, Dostoiévski, e de como a beleza é a fonte geradora do amor que nos faz amar o próximo:

Em seus escritos descreveu pessoas más e destrutivas e outras que mergulhavam nos abismos do desespero. Mas seu olhar, que rimava amor com dor compartida, conseguia ver beleza na alma dos mais perversos personagens. Para ele, o contrário do belo não era o feio, mas o espírito utilitarista e o uso dos outros, roubando-lhe assim a dignidade. “Seguramente não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza”, repetia. Beleza é mais que estética; possui uma dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza. “Ele foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que através da beleza todos se fizessem irmãos entre si”. Ele não se refere ao amor ao próximo; a contrário: é a beleza que suscita o amor e nos faz ver no outro um próximo a amar.

Já o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé em artigo na Folha de São Paulo sobre a máxima “a beleza salvará o mundo”, asseverou:

O grande autor russo Fiodór Dostoiévski (1821-1881) dizia que a beleza salvaria o mundo. Conhecendo o abismo do desespero e do niilismo, ele profetizou a força da beleza como restauradora do espírito.

Para ele, habitaríamos um futuro em que a nossa verdade desapareceria por força de nossa própria dúvida e razão, e que, talvez, apenas a beleza poderia recuperar a  forma do mundo.

Mundo este feito para acolher a misericórdia, já que habitado por solitários como nós. A esperança, para o nosso russo, é flor que brota dos escombros. Visões de um romântico, claro.

Logo, essa visão da beleza pelo literato russo se mostra indissociável de sua religiosidade; mais forte e importante que a própria razão e a verdade. Para ele nada é mais belo que o próprio Cristo; notável como expôs esse seu símbolo de fé maneira apaixonada e emocionante numa carta em 20 de fevereiro de 1854 (também consta trecho abaixo em nota de rodapé de “Os demônios” da Editora 34):

Esse símbolo é muito simples: acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito que Cristo, e não só não há, como eu ainda afirmo com um amor cioso que não pode haver. Além disso, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, melhor para mim querer ficar com Cristo que com a verdade

Apesar de arcabouço e conteúdo espirituais, seria possível aplicar essa máxima em termos seculares (laicos), ou seja, a beleza, personificada pela arte, seria capaz de incentivar positivas mudanças materiais na sociedade para todos, religiosos ou não? Foquemos na arte que possui como um de seus maiores filhos o próprio autor russo: a literatura. Um livro seria projetor da beleza dostoiévskiana, fundamental à vida humana e fonte de nascimento de amor ao próximo?

Os acadêmicos Emanuele Castano e David Kidd, da The New School em Nova Iorque, encontraram evidências de que a literatura melhora a capacidade do leitor de entender o que os outros estão pensando e sentindo.

Em outro estudo, Raymond A. Mar, Jordan Peterson e outros pesquisadores da Universidade de Toronto também chegaram à semelhante conclusão. Assim explica artigo da Discovery Magazine:

Os participantes foram submetidos ao exame “Mind of the Eyes” (mente dos olhos), no qual se    testou sua habilidade de detectar e entender dicas visuais sobre os pensamentos e emoções dos outros. No teste, os participantes associaram palavras descritivas de emoção a fotos de olhos de     pessoas.(Você pode fazer uma versão do teste aqui). A equipe descobriu que quanto mais nomes    de autores literários os participantes conheciam — e quanto mais literatura eles presumivelmente leram — maior sua nota nos testes de empatia.

Pois bem, vimos que estudos científicos possivelmente indicam a capacidade da literatura de aumentar a empatia nos seres humanos. Quem mais a possui consegue enxergar, entender, sentir melhor e com mais frequência a dor do outro, pois capaz de se imaginar naquela situação. Parece óbvio que pessoas empáticas estão mais próximas que não empáticas de alcançar o ideal de amar o próximo como a si mesmo; lembremos das palavras de Boff transcritas acima: “é a beleza que suscita o amor e nos faz ver no outro um próximo a amar”.

Como uma maior empatia ajudaria a “salvar o mundo”? Ora, uma pessoa empática, capaz de se colocar no lugar dos mais necessitados, muito provavelmente desejaria que todos satisfizessem suas necessidades básicas. Isso já seria pelo menos uma faísca capaz de incentivar e inspirar mudanças significativas na sociedade.

A partir desse entendimento, pode-se argumentar que se indica um caminho possível da empatia para o amor ao próximo, gerados pela beleza personificada pela arte, o que poderia gerar efeitos benéficos para todos, levando à seguinte conclusão otimista: Dostoievski e seu Myshink tinham razão, a beleza salvará o mundo!

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